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Em Pauta: Combate ao Racismo

Notícias

Resistência Urbana

28 de setembro de 2016

O racismo não se resume meramente ao preconceito, à cor da pele, ele manifesta-se na profunda negação do diferente, em seu contexto existencial e de visão de mundo. A população negra e indígena, nos mais de 500 anos de formação do país, são olhados como ainda fossem apenas ex-escravos: brasileiros sem raízes culturais e históricas.

A pesquisadora Laura de Mello e Souza em sua análise ressalta que “os negros forros e fugidos” configuram-se como “protagonistas da miséria” por que:

O processo de formação do capitalismo gerou, de um lado e de outro do Atlântico, multidões de desclassificados sociais. Lá, vegetavam nas fímbrias do sistema até que a inteligência do capitalismo nascente os encerrasse em estabelecimentos especiais e, logo depois, passasse a ter neles um exército de reserva para o proletariado. Aqui, criados e deixados sem razão de ser, foram sistematicamente taxados de vadios e inaptos para o trabalho, avolumando-se durante os séculos e constituindo, na época da abolição, uma massa considerável de mão de obra inaproveitada. (…) Em síntese, a camada dos homens pobres era tido como uma outra humanidade inviável pela sua indolência, pela sua ignorância, pelos seus vícios, pela mestiçagem ou pela cor negra de sua pele. (…) A ideologia da vadiagem ganhou vida própria através dos tempos”.1 (SOUZA, 1982).

Foi na primeira metade do século XIX que se intensificou as lutas abolicionistas, fruto de um conjunto de contradições socioeconômicas e políticas da sociedade brasileira e internacional.

A legislação abolicionista inaugurada em 1850, com a proibição do tráfico dos navios negreiros pela Inglaterra, assinala o declínio do sistema escravocrata e a expansão da mão-de-obra livre assalariada. Políticos e intelectuais importantes como Luiz Gama e José do Patrocínio dedicam-se a causa da emancipação dos escravos. As ações dos quilombos abolicionistas, a exemplo do Quilombo do Jabaquara em São Paulo, Quilombo do Leblon/Camélias no Rio de Janeiro e Quilombo do Cupim em Recife afloram por todo o pais. A crise da produção colonial agroexportadora baseado na expropriação do trabalho de mulheres e homens negros abre caminho para a expansão das manufaturas.

É chegada a hora de o capital comercial abrir caminho para a hegemonia do capital industrial, e com isso o Brasil inaugura uma política de estímulo à imigração européia e a abertura dos novos mercados de consumo para os produtos industriais ingleses incompatíveis como o modo de produção escravista. É nesse panorama social e político que é proclamada a abolição da escravatura em 13 de Maio de 1888.

… O fim da escravatura, da qual o Brasil foi o ultimo pais a se livrar, não aboliu o monopólio da terra, fonte de poder econômico e principal meio de produção até as primeiras décadas do século XX. A classe dos trabalhadores brasileiros fez-se com a importação de mão de obra imigrante e a exclusão dos trabalhares nacionais, principalmente os ex- escravos…2 (SANTOS, G. 2009).

A sociedade brasileira pós-abolição assistiu a marginalização socioeconômica e política dos homens e mulheres negras no espaço urbano e rural. No cotidiano da periferia das cidades é marcante presença da população negra construindo os territórios negros.

Nesse período surgiram inúmeras instituições sociais tais como as irmandades religiosas, clubes recreativos, imprensa negra alternativa, manifestações musicais, artísticas e teatrais, escolas de samba, associações de capoeira, organizações e associações sociais e políticas, ressignificadas e denominadas como territórios negros urbanos e rurais.

Nesses lugares demarcados especificamente por relações étnicas eivadas pela segregação racial e espacial tem uma historia pra contar e muita tradição preservada. Segundo o geógrafo Milton Santos, “o conceito de território não é apenas forma, mas produto histórico do trabalho humano, da construção de um domínio territorial, assumindo múltiplas formas e determinações”. 3 (SANTOS, 1996)

Os territórios negros compreendidos como espaços de organização social são em primeiro plano o espaço de resistência e, posteriormente, têm a função social de construir dimensões de uma realidade marcadamente discriminatória e excludente.

Os clubes negros recreativos são lugares onde se realizavam festas, bailes e eventos para a integração e a sociabilidade comunitária da população negra. O mais antigo clube negro a “Sociedade Beneficente Floresta Aurora” ainda este ativo em Porto Alegre/RS, sua fundação data de 1872. Há muitos outros espalhados pelo Brasil, especialmente, na região sudeste do país, e todos tem os mesmos objetivos são espaços de integração social, combatem o preconceito e a discriminação racial e preservaram as sedes sociais dos clubes através de sistema de ajuda mútua e cooperação.

Os clubes negros dinamicamente se transformaram ao longo dos tempos em territórios negros de sociabilidade. A tradição desse tipo de convivência chega aos anos 70, a exemplo do Renascença Clube no Rio de Janeiro, o Chic Show em São Paulo e o Máscara Negra em Belo Horizonte, e, constituem-se em espaço de lazer da juventude negra acostumadas aos bailes – soul e o “Black is beautiful” uma onda de negritude que varreu o Brasil nesse período. Os clubes negros contemporâneos espalhados nas capitais e cidades interioranas constituíram-se pontos de encontro, vivencia e articulação do Movimento Negro Contemporâneo.

A imprensa negra é o conjunto dos jornais editados de forma independente e colaboracionista que revelam a determinação sócio política e ideológica da afirmação da identidade negra vilipendiada pelas teorias racistas do inicio do século XX. Os jornais editados pelas lideranças negras afirmavam a identidade negra em contraponto à ideologia do mito da democracia racial.

O mito da democracia racial pressupõe o fato da miscigenação da sociedade brasileira para vender a idéia da harmonia social entre os distintos grupos étnicos formadores da Nação, cujo pano de fundo é o ideal de embranquecimento do Brasil. Os jornais denunciavam o preconceito de cor nas relações raciais que fechava as portas das oportunidades de bons empregos no setor serviço, nas fábricas, na indústria incipiente e na sociedade em geral.

A imprensa negra nasceu no calor das lutas abolicionistas do século XIX e chegou até ao século XX, principalmente entre os anos 20 e 30, através do esforço intelectual e militante, do autodidatismo das lideranças dedicadas à imprensa alternativa. Em 1915 surgiu na cidade de São Paulo, o jornal O Menelick. Este jornal será propulsor de um fenômeno singular no Brasil: a Imprensa Negra. Entre 1903 e 1963, surgirão inúmeros jornais escritos por negros até a edição de o Correio d’ Ébano em 1963. A época da ditadura militar de 1964, o Jornal Afro Latino América, em meio à censura aos meios de comunicação e restrições dos Atos Institucionais denunciava a violência policial, racial e econômica ao trabalhador negro.

A imprensa negra pontuava em suas páginas os problemas da comunidade negra, as denúncias contra o racismo e a perseguição policial aos capoeiristas, sambistas, terreiros de candomblés e crianças e adolescentes abandonados nas ruas a própria sorte desde a lei do Ventre Livre. Tratava-se de um esforço editorial surpreendente que reafirmava a tradição de luta da população negra e, posteriormente, deu voz a maior criação de resistência politica: a Frente Negra Brasileira.

Criada em 1931 em São Paulo, liderada por José Correia Leite, Arlindo Veiga dos Santos, Francisco Lucrécio e Raul Joviano do Amaral, entre outros, a Frente Negra Brasileira foi um movimento de repercussão nacional, de mobilização popular que atingiu vario outros estados do país, entre eles, Maranhão, Pernambuco, Sergipe, Bahia, Espírito Santo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Minas Gerais. Editou o jornal A Voz da Raça no período de 1936 a 1938.

Em 1936, a Frente Negra Brasileira transformou-se em partido político.4 O registro foi concedido, mas em 1937, o golpe do “Estado Novo” deflagrado por Getúlio Vargas dissolveu todos os partidos, entre eles a Frente Negra Brasileira, fechou a incipiente abertura democrática instaurada pela Revolução de 1930, forçando um recuo nas organizações democráticas, através da ação permanente dos órgãos de repressão e vigilância. Entretanto, o mais importante é que:

“A Frente Negra Brasileira congregou a comunidade negra na luta por sua efetiva integração na sociedade de classe, chegando a integrar 60 mil associados. (…) A FNB criou uma contra ideologia racial reafirmando as contribuições da comunidade negra na construção do Brasil e cobrando seus direitos ao trabalho às oportunidades que eram negadas na prática, o discurso racista que lhes negava o direito de presença na vida política e social, econômica e cultural, a comunidade negra passa a enfrentar o mais duro processo racista que se tem notícia: o do racismo efetivado na prática, mas negado pelas leis ineficazes e pela teoria mistificadora da democracia racial. Tal teoria, que têm em Gilberto Freyre seu grande defensor, afirma claramente que negros e brancos, desaparecerão (genocídio) que por isso, o racismo no Brasil não teria lugar.” 5 (CARDOSO, M., 2002).

Em 1937, a ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas fechou a Frente Negra Brasileira.

Nos anos 40 e 50 a denuncia da luta antirracista adquiriu a expressão artística no Teatro Experimental do Negro, o TEN, criado em 1944 no Rio de Janeiro, pelo militante, artista plástico, escritor, ator e senador da República, Abdias do Nascimento. Dentre as suas importantes realizações, o TEN contribuiu na criação de duas organizações de mulheres negras, ambas criadas em 1950: O Conselho Nacional das Mulheres Negras, fundado por Maria de Lourdes Nascimento, e a Associação das Empregadas Domésticas, liderada por Arlinda Serafim e Elza de Souza, ambas empregadas domésticas. As mulheres negras criaram ainda o Ballet Infantil do TEN.

Na primeira metade dos anos de 70 presenciamos a formação de diversos grupos e organizações negras, a exemplo Centro de Cultura e Arte Negra – CECAN, em São Paulo; o alerta do Grupo Palmares do Rio Grande do Sul, a onda do movimento “soul” nas periferias do Rio de Janeiro e Belo Horizonte, o surgimento do Bloco Ilê Aiyê na Bahia são fatos marcantes da efervescência política e cultural e antirracista.

Em 1976, nesse período de efervescência política e cultural contra a ditadura e a repressão, Lélia Gonzalez no Rio de Janeiro, Milton Barbosa em São Paulo e muitos outros ativistas iniciaram os contatos entre o Rio de Janeiro e São Paulo e as primeiras discussões em torno da criação de uma organização antirracista de caráter nacional.

Nos anos de 1970, frente à conjuntura da Ditadura Militar e a absoluta ausência dos direitos de cidadania, de restrição aos canais de participação democrática, sob um modelo de desenvolvimento excludente da participação de trabalhadores e segmentos dos movimentos sociais e uma forte repressão à liberdade de expressão e organização, o movimento negro contemporâneo será influenciado por aquele contexto nacional e as lutas internacionais do movimento afro-americano por direitos civis, as lutas de libertação dos povos africanos e a difusão pan-africanismo.

“A consciência destas fragilidades não se deu a partir de um impulso apenas interno. As lutas africanas abriram, para os negros no Brasil, outra perspectiva crítica da sua existência no mundo branco. O surgimento de elites negras nos EUA completou o quadro. Se o nacionalismo negro ianque embutido e importado dos EUA resgatava aos brasileiros, sua dignidade de raça, o universalismo da libertação africana exportava dignidade política, permitindo aos ativistas negros redescobrir as massas populares e a universalidade da luta antirracista. Explica-se: o movimento Soul conhecido entre os brancos como movimento Black, ao exacerbar a negritude, deu visibilidade ao negro. Não só junto aos brancos, como entre os próprios negros que, ao se afirmarem como individualidade racial, realizaram a reivindicação de afirmação da consciência negra, tornando palpável para as lideranças negras reivindicações econômicas e de poder. A reação uníssona dos brancos empurrou a emergente classe média negra às suas origens raciais, confrontando-a com a inevitabilidade da sua condição de ex-escrava num país de ex-senhores. Os revolucionários africanos, por sua vez, destruíram o mito maniqueísta de que tudo o que é branco é, necessariamente, um mal, foi o pensamento universalizado e não a lógica do gueto, que alimentou as alianças interétnicas e a manipulação das contradições internas do poder colonial. Os brancos descobriram outro sujeito histórico no processo democrático, que deixou de ser um fenômeno europeu; a África não era só Idi Amim, o que foi bom para a dignidade negra.” 6 (CARDOSO, H. 1988).

A efervescência política contra todas as formas de opressão e exploração apontavam a necessidade de orientação da população negra, principalmente compreender o deslocamento das comemorações do 13 de Maio para o dia 20 de novembro, de sensibilizar intelectuais, estudiosos, e parlamentares, aliados negros e brancos, com a finalidade de denunciar a existência do racismo na sociedade brasileira e afirmar uma atitude crítica frente às desigualdades sócio racial existente entre negros e brancos no Brasil.

No dia 7 de julho de 1978, durante o ato de protesto que reuniu 3.000 pessoas nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, é lançado, publicamente, o Movimento Unificado contra a Discriminação Racial – o MUCDR, posteriormente, Movimento Negro Unificado.

Na terceira Assembléia Nacional do MUCDR, realizada no dia 04 de novembro de 1978, foi aprovado o dia 20 de Novembro – dia da morte de Zumbi – como o Dia Nacional da Consciência Negra.

“Com a publicação de artigo no Jornal do Brasil em novembro de 1974, o Grupo Palmares do Rio Grande do Sul, do qual participava entre outros o poeta Oliveira Silveira, sugeria que a data de 20 de novembro, lembrando o assassinato de Zumbi e a queda do Quilombo dos Palmares, passasse a ser comemorada como data nacional contrapondo-se ao 13 de maio. Argumentava que a lembrança de um acontecimento em todos os sentidos dignificante da capacidade de resistência dos antepassados traria uma identificação mais positiva que a Abolição da escravatura, até então vista, como uma dádiva de cima para baixo, do sistema de S. Alteza Imperial.” 7 (GONZALEZ, L. 1985).


1. SOUZA, Laura de Mello. Desclassificados do Ouro: a pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro, Graal, 1982.

2. Santos, Gevanilda. As relações raciais e desigualdades no Brasil, São Paulo. Selo Negro, 2009, pág. 16.

3. Santos, Milton. O retorno do território. In SANTOS, Milton; SOUZA, Maria Adélia A.; SILVEIRA, Maria Laura. (orgs). Território: globalização e fragmentação. São Paulo. HUCITEC, 1996, 3ª ed., p.15-20.

4. LEITE, José Correia e CUTI. E disse o velho militante José Correia Leite. São Paulo. Secretaria Municipal de Cultura, 1992.

5. CARDOSO, Marcos Antônio. O Movimento Negro. Belo Horizonte, Mazza Edições, 2002. .

6. CARDOSO. Hamilton Bernardes. História Recente: dez anos de movimento negro. São Paulo. Revista Teoria e Debate, n.º 2, março, 1988. Pág. 12.

7. GONZALEZ, Lélia. Mulher Negra. AFRODIÁSPORA – Revista de Estudos do Mundo Negro, números 6 e 7. Rio de Janeiro. IPEAFRO – Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-brasileiros. 1985.

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